ESPÉCIES DO GÊNERO CRYPTURELLUS BRABOURNE & CHUBB, 1914 NO BRASIL

Maria Aparecida Visconti

Dep. de Fisiologia

IB, USP

05508 – São Paulo, SP

O gênero Crypturellus compreende as aves conhecidas popularmente como inambus ou nambus, zabelês e jaós, além de outros nomes de uso mais restrito geograficamente.

Cracraft (1981) inclui os tinamídeos na ordem Paleognathiformes, subordem Ratiti. Antigamente eram colocados entre os galináceos mas quando foram melhor estudados verificou-se que os seus parentes mais próximos são as ratitas, em particular as emas, Rhea sp, tendo em vista a estrutura semelhante do palato ósseo, paleognata e a conformação algo parecida do bico. Contudo sua filogenia ainda dá margem a dúvidas.

Além do gênero Crypturellus outros quatro tem representantes no Brasil: Tinamus, Rhynchotus, Notura e Taoniscus.

Os tinamídeos são exclusivamente neotropicais, ocorrendo do sul do México à Patagônia. São estritamente terrestres, habitam matas fechadas: Crypturellus variegatus (Gmelin, 1789) por exemplo; campos abertos: Nothura sp, Rhynchotus rufescens (Temminck, 1815) por exemplo; matas ao nível do mar: Crypturellus noctivagus (Wied, 1820) e as estepes andinas: Nothoprocta sp.

São capazes de voar a curta distância, algumas dezenas de metros, em direção praticamente retilínea. A razão disto é que apesar de terem forte musculatura peitoral, presa a um esterno muito desenvolvido e fortemente carenado, suas asas são relativamente pequenas, fator limitante da extensão do vôo. A ausência ou condição rudimentar das retrizes, largamente excedidas pelas coberteiras supracaudais, por sua vez não lhes permite maneabilidade durante o vôo.

Outros caracteres distintivos dos tinamídeos podem ser enumerados: cabeça pequena; glândula uropigiana em vias de desaparecimento total; bico ora reto ora um tanto curvo e até muito curvo, com fossas nasais de localização variada, conforme o gênero; fêmur parecido com o dos galináceos; tarsos fortes, ora com placas hexagonais, ora reticuladas, geralmente escuteladas na face anterior e reticuladas na posterior, que pode ser lisa, como em Crypturellus, ou rugosa. Dedos, 3 ou 4, longos e fortes, na maioria das espécies. O primeiro, o hálux, é rudimentar em algumas espécies do gênero Nothoprocta, e bem desenvolvido noutras, geralmente acima do nível das demais. Asas, além de curtas, arredondadas no ápex; dez primárias e treze a dezesseis secundárias. As coberteiras caudais quase sempre recobrem as retrizes. Cor geral parda, algo pedrês, leonada, com tinta negra, cinza, amarela, creme. Em algumas espécies é bem característico o azul escuro. O colorido em todas elas é altamente críptico e constitui o principal mecanismo defensivo dessas aves. Só voam quando o predador chega muito perto. No mais, ou ficam aparadas, quietas, ou se locomovem na vegetação rasteira.

A biologia dessas aves é muito interessante. É o macho que se incumbe das tarefas de incubação e criação dos filhotes. Estudos feitos com C. variegatus nas Guianas mostraram que nas populações dessa espécie existe uma proporção de quatro machos para uma fêmea. Em outras espécies, como Nothocercus bonapartei (Gray, 1867), verificou-se que a proporção entre os sexos é equilibrada e que os machos velhos tem várias fêmeas, que põem seus ovos num ninho comum. De modo geral, entre os tinamídeos as fêmeas são mais agressivas e após acasalarem-se com um macho e porem seus ovos, podem solicitar outro macho, para novo acasalamento e postura. Estudos como estes faltam para muitas das espécies brasileiras, senão todas.

A alimentação dos tinamídeos consiste de grãos e sementes variadas, frutas e pequenos animais como artrópodes, anelídeos, etc. Na procura de alimento, revolvem a porção de folhas mortas que recobre o solo, bem como a camada superior deste, com o bico, não utilizando os pés como os galináceos.

Cada espécie tem um pio característico, sempre assobios curtos, cheios e sonoros, repetidos no mesmo tom, ou em escala ascendente e descendente com ritmos variados. Todos são mais ou menos facilmente imitáveis.

Para dormir procuram pequenas mecegas, ou fazem abrigos rústicos, ajeitando folhas secas, como pude verificar em Crypturellus tataupa (Temminck, 1815).

O ninho é uma escavação simples no solo, forrado com folhas secas, pequenos gravetos, etc. Pelo que pude observar em C. tataupa, a escavação é feita com os pés; com o bico são jogadas as folhas e gravetos que forrarão o ninho, que são ajeitadas, por sua vez, tanto com os pés como com o bico. Os ovos são lustrosos, com aspecto de porcelana, rosa pálido, azul claro, esverdeado e. pelo visto em C. tataupa, relativamente grandes para o tamanho da ave. A postura varia desde 2 até 12 ovos. Como exemplo temos: C. o. obsoletus (Temminck, 1815) – 4 ovos, pardo avermelhados ou chocolate pálido, medindo em média 50x35 mm; o período de incubação é de 21 dias. C. variegatus – 4 a 8 ovos. C. noctivagus 2 ovos rosado-claro, incubação de 18 dias, 3 ou 4 e até mais posturas por ano, de preferência entre agosto e março, como ocorre com a maioria das espécies da família. A perdiz, Rhynchotus rufescens, põe de 10 a 12 ovos. Em C. tataupa a postura em geral é de 4 a 6 ovos, e pude verificar, em exemplares nascidos e reproduzidos em cativeiro, que o intervalo entre a postura de cada ovo é de 3 dias. Em geral, as espécies desse gênero criam 3 a 4 vezes por ano, com incubação média de 20 dias. Os filhotes são sempre nidífugos, ou seja, abandonam o ninho precocemente.

São aves rústicas, resistentes a muitas doenças que atacam a galinha doméstica, passíveis de domesticação e mesmo produção em escala econômica. O Prof. M. B. Guimarães, de Minas Gerais, conseguiu criar o inambu-xororó, Crypturellus parvirostris (Wagler, 1827), em baterias de gaiola do tipo usado para a codorna doméstica. Partindo de exemplares criados em cativeiro, selecionou os mais adequados e através de várias gerações foi reduzindo o tamanho dos viveiros e gaiolas, até criá-los em gaiolas pequenas em bateria (Nogueira Neto, 1973).

Blake (1977) afirma que Crypturellus é " um gênero notavelmente complexo, com numerosas populações mais ou menos distintas, de afinidades incertas", e que a classificação das espécies deve basear-se não só " sobre considerações de morfologia, e das cores e padrões de plumagem", mas " também, em parte, na vocalização, cor dos ovos, e cor da carne além de indicações suplementares de parentesco". Segundo Sick (1985), no Brasil encontram-se representadas 13 espécies.

Quanto à distribuição geográfica desse gênero e mesmo do grupo como um todo pouco se pode afirmar. É um grupo de aves consideradas endêmicas da região Neotropical, filogeneticamente antigas, apesar dos poucos fósseis existentes remontarem a apenas ao Plioceno. Estes foram achados somente dentro da atual área de distribuição do grupo, reforçando a idéia de endemicidade.

Pode-se admitir, pelo exposto acima, que os tinamídeos tinham sofrido um processo de especiação mais ou menos intenso, com dispersões (irradiações) e redispersões variadas. De fato, eles são considerados um grupo dominante de aves da região Neotropical, conhecendo-se nove gêneros e quarenta e sete espécies.

O maior número de espécies e sub-espécies, tanto da família quanto do gênero em questão ocorre na região amazônica, o que poderia talvez ser explicado se levássemos em conta a especiação por isolamento geográfico, baseada na retração e expansão sucessivas de florestas, postulada para aquela região (Haffer, 1969). Co base nessa teoria, poder-se-ia tentar explicar a distribuição disjunta de C. obsoletus e suas sub-espécies: num período de grande expansão das florestas, as populações da espécie teriam se dispersado por uma grande área, do sul do rio Amazonas até o sul do Brasil, no Rio Grande do Sul. Com a retração daquelas, teria havido uma expansão do cerrado, vegetação que não oferece condições para C. obsoletus, assim as diferentes populações, provavelmente já constituindo sub-espécies, teriam se isolado (Muller, 1977).

Além disso, pode-se admitir que os dados de distribuição geográfica para muitas espécies sejam incompletos, visto que não foram muitas as expedições zoológicas para a captura de exemplares, dada a vastidão de nosso território. É de se temer, inclusive, que muitos dados fiquem definitivamente incompletos, dada a rapidez com que a flora e fauna de nosso país estão sendo destruídas. Os nomes populares também não ajudam muito, pois variam de região para região, ou muitas vezes são aplicados a animais diferentes.

Deve-se salientar, ainda, que os rios são barreiras naturais para essas aves, notadamente os amazônicos, muito caudalosos. Muitas vezes em cada margem de um mesmo rio encontramos uma sub-espécie.

As aves do gênero Crypturellus, e outras da mesma família, reproduzem-se com relativa facilidade em cativeiro, o que permite assegurar sua preservação, inclusive com vista a futuros repovoamentos em regiões onde não são mais encontradas, desde que estas tenham as mínimas condições naturais para a sobrevivência dessas aves.

Bibliografia consultada

BLAKE, E.R., 1977. Manual of Neotropical Birds – Spheniscidae (Penguins) to Laridae (Gulls and Allien). Editor: The University of Chicago Press. Vol. 1.

CRACRAFT, J., 1981. Toward a phylogenetic classification of the recent birds of the world (Class_Aves). The Auk, 98:681-714

GILLIARD, E.T., 1970. Las aves. Editorial Seix Barral, S.A. 451 pp. Barcelona.

DARLINGTON, P.J., 1957. Zoogeography. John Wiley e Sons, Inc., Publisher. 675 pp. New York

FITTKAU, E.J. (Ed.), 1968-1969. Biogeography and geology in South America. Editor: Hague, Dr.W. Junk, N.V. Publishers, Vols 1 and 2.

HAFFER, J., 1969. Speciation in amazonian forest birds. Science, vol. 65 n. 3889.

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MULLER, P., 1977. Tiergeographie. B.G. Tenbner. Stuttgart.

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PINTO, O.M.O., 1964. Ornitologia Brasileira. Depto Zoologia da Secretaria da Agricultura de São Paulo, 182 pp. São Paulo.

SANTOS, E., 1952. Da ema ao beija-flor. 2ª edição. F. Briguet e Cia. Editores. Rio de Janeiro.

SICK, H., 1984. Ornitologia brasileira: uma introdução. 2 vol. Editora da Universidade de Brasília.

Recebido em 10 de junho de 1987