Bol. CEO 8:16-21 Janeiro de 1992

O NINHAL DO PARQUE ESTADUAL DAS FONTES DO IPIRANGA, SÃO PAULO (ESTADO DE SÃO PAULO, BRASIL)

Maria Martha Argel de Oliveira

Centro de Estudos Ornitológicos

Teve destaque pela imprensa, recentemente, o crescimento da população de aves aquáticas que se reproduz no Parque Estadual das Fontes do Ipiranga, em São Paulo (SP). A expansão desse ninhal, segundo os pesquisadores do Instituto de Botânica (IB), localizado no parque, estaria comprometendo de forma crescente a qualidade da mata aí existente, chegando a ameaçar a sobrevivência dessa vegetação.

De acordo com um dos vigias do PEFI, o Sr. José, as aves aí se reproduzem desde meados da década de 70. Em literatura, porém, constam apenas alguns dados obtidos em 1986 (ARGEL-DE-OLIVEIRA, 1987).

A 06 de outubro de 1990 visitamos a área, e nessa ocasião coletamos as informações que passo a apresentar.

O ninhal ocupa uma área de forma aproximadamente oval, com cerca de 300 m em seu maior comprimento, ao longo da margem do lago maior do parque, por cerca de 150 m de largura, estendendo-se da margem desse lago à encosta de um morro adjacente. É cortado por um caminho paralelo à margem do lago. Nos anos de 1986/87 tal encosta não abrigava ninhos dessas aves, o que atesta a expansão sofrida pela colônia nos últimos anos.

Foi observada a presença das seguintes espécies, ativamente envolvidas em atividades reprodutivas:

Ordem Pelecaniformes – Família Phalacrocoracidae

biguá – Phalacrocorax olivaceus

Ordem Ciconiiformes – Família Ardeidade

garça-branca-grande – Casmerodius albus

socó-dorminhoco – Nycticorax nycticorax

Com apenas uma exceção, essas foram as únicas aves observadas na área atualmente ocupada pelo ninhal. Pode-se supor que outras espécies anteriormente estabelecidas nessa área, principalmente as florestais, tenham desaparecido em razão da existência da colônia e das alterações por ela causadas.

Fora as espécies acima, outra espécie constatada no local foi Coragyps atratus, o urubu-de-cabeça-preta. É provável que a presença dessa ave detritívora se deva justamente à grande quantidade de alimento representada pelas aves mortas, principalmente jovens, e por alimento regurgitado.

Não é impossível que essa ave aja como predador de indivíduos doentes, feridos ou moribundos. Outros predadores potenciais presentes na área são o lagarto teiú (Tupinambis teguixin sp.), avistado por ocasião da visita, tatus (fam. Dasypodidae), quatis (Nasua nasua) e gambás (Didelphis sp.), mencionados pelo Sr. José. Aves de rapina existem no PEFI, como o gavião-carijó (Buteo magnirostris), ouvido no interior da mata no mesmo dia.

Ao percorrermos o caminho que corta o ninhal uma ave levantou vôo, ao mesmo tempo regurgitando o conteúdo de seu papo. Juntamente com um peixe semi-digerido havia duas pernas de N. nycticorax. Infelizmente não foi possível ver a que espécie pertencia a ave, mas presumimos que as pernas fossem de algum indivíduo consumido depois de morto.

Durante a visita foram vistas algumas aves mortas, todas jovens: P. olivaceus, 3 indivíduos no solo dentro do ninhal e 1 pendurado em árvores; N. nycticorax, 7 no solo dentro do ninhal, 1 fora, 2 pendurados em árvores e 1 regurgitando; C. albus, 4 no solo e 1 ao lado de ninho.

É relevante mencionar que as aves vistas penduradas em árvores estavam presas por fios de nylon, talvez de pipas ou de varas de pesca. O biguá estava preso pelo pescoço. Os socós, dois jovens, estavam presos pelos pés, juntos; provavelmente tratava-se de uma ninhada que emaranhou-se em algum fio que estava no ninho. Um adulto observado no solo, sob o ninhal, apresentava ferimentos ao redor do pescoço e na cabeça. A disposição dos ferimentos sugeria que algum fio tivesse se enrolado no pescoço do animal, o qual ter-se-ia ferido ao tentar livrar-se.

Quanto à vegetação, mesmo à distância pode-se comprovar que está muito afetada pelas fezes das aves do que estava a alguns anos atrás. A margem do lago, onde anteriormente se viam ramos bem folhados e ainda verdes, hoje apresenta apenas troncos e galhos embranquecidos, e as poucas folhas que restam estão cobertas por guano. No trecho onde a colônia é mais antiga, situado entre o lago e o caminho, não existe mais sub-bosque, e a movimentação humana só é impedida por galhos secos e por trepadeiras. Na área de ocupação mais recente a vegetação está em melhor estado, mas já se vêem trechos onde os excrementos recobrem o solo. Durante o deslocamento nessa área fomos constantemente atingidos por uma fina chuva de guano já seco, que se despregava das folhas acima de nós quando as aves se alvoroçavam, à nossa passagem.

Pelo que pudemos perceber em nossa breve visita, P. olivaceus é a espécie predominante na área já desprovida de folhagem, mais próxima à água. Vimos aí muitos ninhos que aparentemente já não são usados, mas grande número de biguás ainda utiliza a área para a implantação de seus ninhos. C. albus preferencialmente na mata de encosta do morro, parecendo haver aí maior quantidade de ninhos ativos da espécie. o número de P. olivaceus parece ser muito menor. N. nycticorax ocorre nas duas áreas, em número ligeiramente menor que as outras duas espécies.

O sucesso reprodutivo parece ser alto, ao menos para C. albus. De 24 ninhos aleatoriamente escolhidos, 10 continham 3 filhotes, 12 continham 2 e apenas 1 tinha um único filhote. Ninhos com três filhotes já bem desenvolvidos são comuns, atestando a existência de fontes de alimento abundante.

Durante o tempo em que percorremos o interior do ninhal, frequentemente as aves deixavam os ninhos ante nossa aproximação. Jovens de P. olivaceus foram vistos caindo do ninho mas evitando a queda ao solo ao assegurarem-se com o bico em galhos; outros, após atingirem o solo, corriam para a água, onde mergulhavam para reaparecerem alguns metros adiante. O número de adultos que nadavam no lago era perceptivelmente maior enquanto estávamos no ninhal do que quando chegamos à área. C. albus revoavam acima das árvores. Na encosta do morro N. nycticorax com plumagem juvenil se atiravam dos ninhos e corriam por entre as árvores, afastando-se de nós.

Poucas aves foram vistas alimentando-se no próprio lago onde se situa o ninhal, o que confirma a informação do Sr. José de que as aves deixam o local após o amanhecer, dirigindo-se principalmente na direção das represas Billings e Guarapiranga. Cabe acrescentar que existe uma considerável movimentação de biguás entre os FEPI e o Parque Ibirapuera, pois observo a passagem dessas aves praticamente todos os dias por cima do Bairro Planalto Paulista, situado no meio caminho entre as duas áreas verdes (ARGEL-DE-OLIVEIRA, n. publ.).

Coletamos alguns exemplares de peixes regurgitados. Ao menos 3 espécies foram encontradas, entre elas o Tamboatá (Callinchthys cllichthys). Observamos peixes com até 12 cm de comprimento.

Com relação à sazonalidade dessas aves, volto a citar as informações do Sr. José: P. olivaceus permanece na área o ano todo, diminuindo um pouco seu número entre fevereiro e junho; C. albus deixa a área após a reprodução, em fevereiro, retornando em junho-julho. Confirmo a periodicidade da presença das aves: em visita realizada à área em abril de 1989, o local encontrava-se deserto de garças e, aparentemente, de biguás.

Não existe uma estimativa do número de aves presente no ninhal. O Sr. José confirma ter havido aumento na população entre 1989 e 1990. Posso dizer que notei um aumento significativo no tamanho da população de P. olivaceus quando comparada com a de 1986/87. Quanto a C. albus não estou certa. Tenho a impressão de que a população é semelhante, ou apenas levemente maior. Não tenho meio de avaliar a situação de N. nycticorax.

Alguns dados obtidos fora do PEFI corroboram a hipótese de que o principal aumento populacional se deu em P. olivaceus. Durante um ano, em 1984/85, realizei observações sistemáticas no Bairro Planalto Paulista, sem um registro sequer de P. olivaceus ou C. albus. Repetindo a metodologia no ano de 1990, apenas no mês de agosto registrei uma vez a garça-branca-grande e 10 vezes o biguá, inclusive um bando com cerca de 40 indivíduos; em setembro, novamente 1 vez C. albus e 18 vezes P. olivaceus (ARGEL-DE-OLIVEIRA, n. publ.).

Acredito que, como anteriormente sugerido por I. ASSAD-LUDEWIGS (in litt.), a expansão da população de aves aquáticas na área tenha corrido, em parte, como consequência da facilitação das condições de captura de alimento, pelo rebaixamento do nível do lago durante outubro e novembro de 1989. Mas creio que um outro fator colaborou para que isto ocorresse: a diminuição da atividade humana no entorno com o fim, à mesma época, da pesca por funcionários da Fundação Parque Zoológico, adjacente à área. Os peixes capturados destinavam-se à alimentação de animais mantidos nessa instituição.

Pode-se aventar a hipótese de que o aumento da população de aves (provavelmente a de P. olivaceus) tenha levado à alteração da vegetação na área originalmente ocupada pela colônia. Com isso, C. albus teria passado a ocupar áreas em melhores condições, mais distantes da água, abandonando parcialmente a antiga área de reprodução. Os biguás e poucos N. nycticorax aí teriam permanecido, talvez por serem incapazes de competir com as garças por melhores locais para nidificação.

Não é possível prever que rumo este processo tomará e tem plena razão o Instituto de Botânica em preocupar-se com a vegetação desse trecho do PEFI.

Sabe-se que ninhais de aves aquáticas noutras regiões do país tem duração efêmera, pois o excesso de guano leva as árvores à morte.

Acredito que alguma medida deva ser tomada no sentido de controlar o tamanho do ninhal em questão. Deve ser desencorajada, porém, qualquer iniciativa tomada sem um estudo prévio da população de aves, principalmente quanto à dieta, comportamento alimentar, deslocamentos diários e sazonais e dinâmica populacional.

Agradeço a colaboração do biólogo Ricardo Pinto da Rocha, que juntamente comigo percorreu a área e que fez relevantes comentários durante a redação. Especial agradecimento devo ao Sr. José pela gentileza ao guiar-nos durante nossa visita. Sou grata ainda à Dra. Ingrid Y. Assad-Ludewigs por facilitar o acesso ao local.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ARGEL-DE-OLIVEIRA,. M.M. (org.), 1987. Observações preliminares sobre a avifauna da Cidade de São Paulo. 1986. Bolm CEO, (4); 6-39.

Recebido em 20/03/91.